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terça-feira, 15 de setembro de 2009

O estranho caso de um católico inglês

Nem todos os católicos são enfadonhos: a prova disso é G. K. Chesterton. Imaginava ter este autor caído no esquecimento, mas, pelos vistos, enganava-me. Ele aí está de novo, remoçado e em óptima tradução da sua biografia intelectual, Ortodoxia [Alêtheia Editores, 2008, tradução de Maria José Figueiredo]. Quando a encontrei não resisti a ver como, passados cinquenta anos, reagiria ao seu contacto. Hoje, como ontem, rendi-me à sua prosa.

Maria Filomena Mónica, Público, 15 de Setembro de 2009





Excepto nos países totalitários, a dissidência é um prazer. Segundo a mais simples fórmula matemática, a dupla dissidência dá o dobro do gozo. Ora, no Reino Unido, a opção pelo catolicismo representa um gesto de rebeldia não só em relação à Igreja como ao Estado. Depois de, no século XVI, Isabel I ter declarado serem os católicos um bando de heréticos, o destino desta confissão passou por várias etapas, da condenação à morte à tolerância e, por fim, à glamorização. Hoje, ser-se católico no Reino Unido é chique. Quando, em 1922, G. K. Chesterton aderiu à Igreja Católica (muitos anos depois de ter escrito este livro) já não se decapitavam os crentes no poder papal, mas não existia ainda a vaga de conversões recentes, de que a mais famosa é a de Tony Blair.

Esqueçam os seus livros mais populares, Father Brown e The Napoleon of Notting Hill, e concentrem-se na Ortodoxia, a sua biografia intelectual (Lisboa, Alêtheia, 2008, tradução da versão original de 1908). É verdade que também escreveu uma obra intitulada Autobiography (Londres, Hamish Hamilton, 1936), mas não se lhe compara em qualidade. Nesta, que começa bem, G. K. Chesterton tentou falar da sua vida, mas nada lhe interessando menos do que o ego, não tarda em divagar.

Chesterton era um radical que odiava os privilégios dos ricos e o poder do Estado, sentimentos que nunca renegaria. O previsível teria sido optar, como o seu amigo Bernard Shaw, pelo socialismo, mas não foi isso que fez, encaminhando-se gradualmente para o cristianismo e, mais tarde, para o catolicismo. Como sucederia com Orwell, o que lhe importava era o concreto, não um qualquer esquema destinado a salvar a Humanidade. Como Orwell ainda, sentia-se mal entre os intelectuais do seu tempo e, como Orwell, valorizava a tradição. Dito isto, os seus caminhos divergiram. Porque, na vida de G. K. Chesterton, irrompeu o divino.

Eis como conta a sua conversão (pág. 119): «Até essa altura, tudo quanto tinha ouvido dizer acerca da teologia cristã me afastara dela. Aos doze anos, era pagão, aos dezasseis era completamente agnóstico; e não consigo conceber que uma pessoa passe pelos dezassete anos sem ter feito a si mesma pergunta tão simples. Mantinha, é certo, uma nebulosa reverência por uma divindade cósmica, a par de um enorme interesse histórico pelo fundador do cristianismo. Mas não tinha dúvida nenhuma em O considerar um homem – embora talvez achasse que, mesmo assim, Ele tinha algumas vantagens relativamente a alguns pensadores modernos que O criticavam.» Reparem no que vem a seguir: «Li a literatura científica e céptica do meu tempo, ou pelo menos toda a literatura que consegui encontrar em inglês (...). Não li uma linha que fosse de apologética cristã; actualmente, leio o mínimo que posso. Foram Huxley, Herbert Spencer e Bradlaugh que me fizeram regressar à teologia ortodoxa, por me terem semeado no espírito as primeiras dúvidas terríveis que eu tive acerca da dúvida.» Em resumo, a sua conversão foi a forma como ele reagiu à arrogância, limitação e estupidez dos positivistas do seu tempo. Nascido em 1874, foi sempre um inconformista.

Em resposta aos cínicos que faziam troça do seu idealismo, diz (pág. 61-62): «O que de facto aconteceu foi exactamente o oposto do que eles tinham previsto. Afirmavam eles que eu havia de largar os meus ideais e de começar pragmaticamente a acreditar no funcionamento da política. Ora, a verdade é que eu não abandonei minimamente os meus ideais; a verdade é que a fé que deposito nas questões fundamentais permanece intacta. Aquilo que abandonei foi a fé infantil na pragmática política. (...) Continuo a acreditar no liberalismo, tanto como sempre acreditei, mais do que sempre acreditei. Embora seja certo que o período de dourada inocência em que acreditei nos liberais já passou.» Algumas páginas depois, argumentava a favor da tradição (pág. 63): «Mas há uma coisa que, desde a minha juventude, nunca consegui compreender: onde foram as pessoas buscar a ideia de que a democracia se opõe, seja de que maneira for, à tradição? Pois é óbvio que a tradição mais não é do que um prolongamento da democracia no tempo.»

Profetas da desgraça

Muitos apologistas cristãos são gente melancólica. Não é esse o caso de Chesterton, um optimista feito a pulso. Note-se como olha a realidade (pág. 89): «Porque o universo é uma jóia e, embora seja uma metáfora comum afirmar que as jóias são incomparáveis e preciosas, no caso destas jóias isso é literalmente verdade. Este cosmos é efectivamente sem par e sem preço, porque não pode haver mais nenhum como ele.» Odiou sempre os profetas da desgraça (pág. 100): «Bem sei que este [o pessimismo] é o sentimento predominante na época em que vivemos e parece-me que este sentimento gela a nossa época. Tendo em consideração os titânicos objectivos de fé e de revolução que nos movem, aquilo de que nós precisamos não é da fria aceitação do mundo, que afinal mais não é do que uma enorme cedência; precisamos é de encontrar maneira de o amar de todo o coração e de o detestar de todo o coração.» Para quem não o tivesse compreendido, explicava: «Não queremos que a alegria e a dor se neutralizem mutuamente, produzindo um contentamento enfadado; queremos sentir um prazer mais acentuado, mas também uma dor mais acentuada.»

Em jovem, Chesterton sofrera uma depressão, revelando como a superara: «E, a partir do momento em que se deu essa inversão [do pessimismo para o optimismo], eu tive aquela sensação de libertação abrupta que se tem quando um osso deslocado é novamente posto na respectiva cavidade natural. (...) Mas o optimismo do meu tempo era, todo ele, falso e desencorajador, porque se esforçava por demonstrar que nós nos adaptamos a este mundo. Ora, o optimismo cristão assenta no facto de que nós não nos adaptamos a este mundo.» Poucos falavam assim.

Este livro é uma tentativa para nos convencer que o credo racionalista é deficiente (pág. 195): «O cristianismo é a única religião do mundo que achou que a omnipotência tornava Deus incompleto. O cristianismo é a única religião que achou que Deus, para ser totalmente divino, tinha de ser um rebelde, para além de ser um rei.» Para ele, Cristo é subversivo, não um aliado da Ordem. Mais adiante (pág. 201) dissertará sobre as vantagens do cristianismo, a que chama ortodoxia: «Se queremos derrubar o opressor próspero, não é com a ajuda da nova doutrina da perfectibilidade humana que conseguiremos fazê-lo; mas seremos capazes de o fazer com o auxílio da velha doutrina do pecado original. Se queremos extirpar crueldades inerentes ou animar populações decaídas, não é com o auxílio da teoria científica segundo a qual a matéria precede o espírito que conseguiremos fazê-lo; mas seremos capazes de o fazer com o auxílio da teoria sobrenatural segundo a qual o espírito precede a matéria.»

G. K. Cherteston insiste, o que é curioso, no facto de ter aderido ao cristianismo não devido a um chamamento superior, mas através de métodos racionais (pág. 213): «Discuti em pormenor estes casos típicos de dúvida, a fim de transmitir a tese principal: que é por motivos racionais, embora não seja por razões simples, que adiro ao cristianismo. Consistem esses motivos numa acumulação de factos diversos, que é também aquilo que justifica a atitude do agnóstico comum. Acontece, porém, que o agnóstico percebeu tudo mal.» Vem, depois, a secção mais polémica: «Ele [o agnóstico] é descrente por uma série de razões – todas elas falsas. Ele duvida porque a Idade Média foi uma idade bárbara, quando a verdade é que não foi; porque o darwinismo está provado, quando a verdade é que não está; porque não há milagres, quando a verdade é que há; porque os monges são preguiçosos, quando a verdade é que eram diligentes; porque as freiras são infelizes, quando a verdade é que são particularmente alegres; porque a arte cristã era triste e apagada, quando a verdade é que era feita de cores berrantes e recoberta a ouro; porque a ciência moderna está a afastar-se do sobrenatural, quando a verdade é que não está, está a aproximar-se do sobrenatural à velocidade de um comboio rápido.» Muito do que afirma é um disparate, mas isso não me impede de gostar de o ler.

O mundo seria mais triste?

Quase no final, G. K. Cherteston tenta responder à pergunta que muitos fazem, no sentido de saber se não podemos ficar com o que de bom existe na doutrina cristã, deitando borda fora os dogmas. Depois de se ter declarado, mais uma vez, um racionalista, aborda a tese de que, com a religião, o mundo teria ficado mais triste, negando-a: «Os países europeus que ainda se encontram sob a influência dos sacerdotes são exactamente aqueles países onde ainda se canta, se dança, se envergam roupas coloridas e se praticam as artes ao ar livre. A doutrina e a disciplina católicas poderão ser muros; mas são muros de um parque de diversões.»

Dou de barato que os países em que o calvinismo foi dominante são mais sombrios do que os que optaram pelo catolicismo, mas é preciso não adoçar o que acontecia nos países latinos. Basta pensar em Portugal. Exceptuando W. Beckford, que, no século XVIII, apreciou uma missa a que assistiu na capela das Necessidades, sobretudo pelo seu luxo, raramente um estrangeiro louvou o que viu. A maioria era protestante, mas isto não invalida todas as observações. Escolho um extracto, ao acaso, retirado do livro de W. M. Kinsey, um clérigo que visitou Portugal em 1828: «Se as cerimónias da Igreja Católica não conduzissem a mais do que a um divertimento inocente dos seus aderentes, tudo estaria bem; mas essa faceta é, infelizmente, aquilo que podemos considerar a poesia do sistema. A triste realidade encontra-se na tirania dos confessionários, nas arrogantes extorsões e nas exigências anticristãs do poder papal.» Foi isto que G. K. Chesterton não quis reconhecer.

Na realidade não conhecia, por dentro, os países onde a Igreja Católica era dominante. Lembrando a sua Irlanda natal, Bernard Shaw avisou-o do perigo de continuar a fazer extrapolações a partir do que se passava em Inglaterra, mas aquele não o quis ouvir. Não sei o que teria escrito caso tivesse visitado Portugal, mas sei o que eu vi e vivi. A tal ponto era aqui a Igreja Católica dominante que, até aos meus 15 anos, pensava ser a única em todo o planeta. Na escola, na família, nas ruas, jamais vislumbrei alguém que professasse outra religião. Estou consciente de que o meu caso – tendo ingressado num colégio de freiras aos três anos só dele sairia aos dezassete – não é generalizável, mas sei que muita gente nascida, como eu, na década de 1940, terá passado por uma experiência semelhante. Na redoma em que o cardeal Cerejeira, o arcebispo de Mitilene e a minha mãe me enclausuraram não entravam correntes de ar.

Só em 1962, quando vivi em Londres durante alguns meses, descobri que existiam protestantes, judeus e muçulmanos. Poderia ter aproveitado para aderir ao anglicanismo – isso, sim, um gesto original –, mas, uma vez que estava em rota de colisão com Deus, o melhor, concluí, era deixar de pensar n'Ele.

Quando regressei à pátria, continuei a ler os livros que havia lá por casa. À mistura com obras que sabia interditas, como as de André Gide, Óscar Wilde e Bertrand Russell, compradas com a minha «semanada», lia o que estava nas estantes da sala. Apesar de católica, a minha mãe era inteligente, não se contentando em dirigir a lida da casa. Em grande medida, a minha iniciação literária foi feita à base dos escritores que ela admirava, A. J. Cronin, François Mauriac e G. K. Chesterton. Do primeiro, pouco me ficou, além de um punhado de mineiros; do segundo, umas velhas provincianas; G.K. Chesterton saiu vitorioso. Reli a sua Ortodoxia com prazer. Estou certa que a outros, católicos ou ateus, acontecerá o mesmo. Não deixe que o livro se perca entre as capas que efemeramente ornamentam as estantes das nossas livrarias.



Nota: Maria Filomena Mónica publicou, na Alêtheia Editores, os livros Bilhete de Identidade (Memórias 1943-1976), Cesário Verde, um génio ignorado, e Passaporte (Viagens 1994-2008).

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